segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Fortaleza


Nota no Ancelmo Goes de hoje me fez pensar.

"Quem é Narciso?
Na entrevista ao "Jornal do Commercio" de Recife, Evaldo Cabral de Mello, grande historiador que minimiza a importância da chegada da família real ao Brasil, disse que tanta festa é "produto a mais do narcisismo coletivo do carioca, que, acreditando-se o mais cosmopolita dos brasileiros, é, na verdade, o mais provinciano".
Só que...
Em matéria de narcisismo, o produtor cultural carioca, Ney Murce, do comitê da Associação Comercial do Rio que celebra os 200 anos, lembra que Evaldo é de Recife, "cidade onde a mania de grandeza é tanta que uma piada local diz que lá o Rio Beberibe se une ao Capibaribe para formar o Oceano Atlântico".
Por falar nisso...
Viva o Rio! Viva Pernambuco!"

Recife está no sangue (minha mãe certamente está entre os mais "patriotas" dos recifenses). Além da família, passei um ano por lá, bons amigos feitos. O Rio, que eu lembrava vagamente por causa das fotos no álbum de infância, é minha casa há um ano e pouco(e ainda não sei por quanto tempo...).

Daí é que posso dizer com uma certa propriedade que são, sim, o carioca e o recifense: narcisistas, graças a Deus.

O recifense tem demais do que se orgulhar. A ebulição cultural daquela cidade é singular. Recife tem uma identidade própria, pulsante, que está no sotaque, na arquitetura, na geografia, nas idéias, na música... E o Rio não é cartão-postal do Brasil à toa. Ao mesmo tempo em que sintetiza a identidade brasileira, tem algo que é cario-a-ca apenas. Que está no sotaque, na arquitetura, na geografia, nas idéias, na música... As duas cidades são percussão pura, se mostram na força da batida seja do samba, seja do maracatu.

Eu podia discorrer linhas sobre as semelhanças entre o carioca e o recifense (e a sua deliciosa arrogância). Mas apesar da verborragia desse texto até aqui, não era nada disso que eu queria falar. Era da irritante humildade fortalezense.

Um dia antes de ler o Ancelmo, li o Dante e senti o travo de cirigüela verde com o que ele disse. Disse o que a gente diz desde sempre nas rodas meio-intelectuais, meio-de-esquerda. Que nossa Miami tupiniquim venera o novo e por isso destrói suas tradições. Que a cidade vai crescendo com ares de shopping center - ou de Barra da Tijuca. Que se perdem os referenciais da história antiga e recente (e os órfãos do Cais Bar ainda a se lamentar nas mesas do Arlindo - que por sua vez já tem barraca de caipifrutas na calçada, em dia de samba).

Nosso amor-próprio é frágil. O fortalezense classe-média não anda na rua e reclama que não tem calçadas, que o sol queima o quengo, que a violência aterroriza. Não conhece a cidade. O Rio é conhecido mundialmente pelas balas perdidas e pelo verão 40 graus, mas o carioca vai a pé ao mercado, à praça, ao boteco. A rua é deles; a cidade é deles. O fortalezense vai ao carnaval de Pernambuco e volta com vestindo a bandeira de lá; ou veste as pedras portuguesas do calçadão de Copacabana. Talvez nem se lembre da (nada original) bandeira do estado e nem que se esforçasse muito conseguiria dizer dos ladrilhos atuais da Beira-Mar ou da Praia do Futuro (se é que ainda estão lá).

Se a gente sai (e a gente se espalha!), a cearensidade até quer falar alto. Aí a gente se mistura aos cabeça-chata de Guaraciaba, Tianguá, Hidrolândia e toda zona norte do estado, quando vem ao Rio; ou aos caririenses que migram pra Recife. Aí até somos cearenses com orgulho... Mas e Fortaleza?

Porque o carioca se orgulha de ser carioca - antes ainda que de ser fluminense - e veste o Cristo, os calçadões, o Pão de Açúcar, o rótulo do "bixcoito gloabo". O recifense até veste a bandeira do estado, mas canta os rios, pontes e overdrives, a urbanidade do Recife. Muito bem, certa vez já se cantou a aldê, aldeota... Mas se deu o carneiro, vão-se embora pro Rio de Janeiro (onde o repertório é outro).

Para ter as calçadas alargadas e as árvores fazendo sombra no caminho até a padaria; para ter botecos consagrados e consolidados; para salvar a Praia de Iracema da prostituição infantil; para que a nossa trilha-sonora urbano-sertaneja ganhe o mundo; para que os nossos times voltem (e fiquem) na primeirona; para que Fortaleza seja de fato bela... Não basta nova gestão na prefeitura, nem desapropriações nem canteiros nem dinheiro. O que a gente precisa mesmo é olhar no espelho e achar Narciso bonito.

PS - para ter orgulho ser fortalezense, e atiçar as saudades, uma das melhores receitas que eu conheço é ler o meu editor preferido, no opovo ou agora em livro também. Às vezes, também, a Periférica da Lelê.
PS2 - A foto é do Drawlio. Praça dos Leões, Fortaleza, Ceará.

3 comentários:

margot disse...

Eu merminha amei esse post. Pensamento-síntese de tudo que eu sempre quis dizer sobre estas paragens, mas achava que não pegava bem devido a "origem narcísica". Vamos embora construir a Fortaleza dos afetos. Uma beijoca da Maricota.

Caiê disse...

mari, tu é nossa primeira visitante! ;-)

Caiê disse...
Este comentário foi removido pelo autor.